terça-feira, 6 de junho de 2017

A única blasfêmia

A literatura de montanha sempre me fascinou. Grandes histórias escritas por escaladores povoam a minha imaginação e lembram que cada geração continua seu próprio caminho, apoiados nos ombros das gerações que os precederam.
Celebrando essas gerações apresento a vocês um texto que é considerado um grande clássico da literatura de montanha.

A única blasfêmia
John Long


Derek Hersey escalando em solo. Morreu em 1993 no Yosemite. CC Andy Stephenson / geograph.org.uk



A mais de 130 quilômetros por hora a polícia pode colocar você na cadeia. Eu dirijo a uns prudentes 128. Tobin Sorenson conduzia a 160. Fez isso até que estourou seu Datsun. Não surpreenderia a ninguém que se matasse tentando em solitário a face norte do Monte Alberta. Tobin nunca teve limites. Sua voraz motivação e sua audácia infinita o fizeram apaixonar-se da escalada em solitário.

Estou me dirigindo ao Parque Nacional de Joshua Tree, onde há algumas semanas um outro colega morreu escalando sem corda. Depois da sua queda, me aproximei da base da via e ao ver manchas de sangue, restos de carne e tufos de pelo, senti calafrios. O solo integral não perdoa. Encaro essas desgraças como faria um marinheiro experiente, e as considero evitáveis. Escalar em solo é normal, creio eu. É preciso somente ser realista, não um palhaço movido pela soberba ou pelo que os outros dirão. Aos 140 por hora chego a Joshua Tree, porém a noite demora a passar.

O sol da manhã aparece na linha reta do horizonte e confere um brilho falso às inumeráveis pedras que salpicam a superfície do deserto. As paredes mais altas sobrepassam os 45 metros de altura. Me reúno com John Bachar, provalvemente o número um da escalada livre. John vive na zona de escalada mais ensolarada que possa encontrar em cada temporada. Está dois meses em Joshua Tree e seus solos integrais deixaram atônitos todo o mundo. No inverno, a época em que a universidade limita minha escalada aos finais de semana, a minha motivação é fabulosa, mas minha forma física nem tanto. Bachar sugere o dia Half Dome, significa dizer 600 metros de escalada, equivalente a altura do Half Dome. Isso significa escalar 20 esticões de corda para concretizar o dia Half Dome. Em um segundo, Bachar está calçado com a sapatilha e com a bolsa de magnésio presa à cintura.

Está pronto? Ele pergunta.

Nesse momento percebo que ele pretende escalar os 600 metros em solo integral. Para manter as aparências digo que estou de acordo, e penso que, se propõe a algo demasiado ameaçador deixarei o jogo e pronto.

Embarcamos em terreno familiar: fissuras verticais, placas de aderência, tetos, chaminés. Estamos alucinados. Estamos escalando em solo integral, sem corda. De vez em quando uma voz me pergunta o quanto confiável pode ser uma borda de 6 milímetros: se você está apressado, ou aperta com a mão convertida em uma garra, ou se apoia nessa saliência com muito cuidado.

Depois de três horas já demos conta de uma dezena de esticões. Nos sentimos invencíveis. Aumentamos a dificuldade até o sexto grau. Os metros são superados mais lentamente, porém as duas e meia da tarde já completamos 20 esticões. Para terminar, Bachar propõe fazer somente um VIIa, algo capaz de amedrontar qualquer um. Sem comentários, VIIa é o meu grau limite no inverno … quando estou inteiro e inspirado. Porém agora estou exausto e zonzo pelos 600 metros que escalamos, e os últimos 4 ou 5 esticões escalei por pura teimosia. Apesar disso vamos correndo até o Interserction Rock, lugar que estão reunidos os escaladores locais. Esse é também o cenário do solo final de Bachar. Não perde tempo e, quando inicia, deixa petrificados um amontoado de escaladores encrenqueiros. Move-se com espantosa precisão, mantendo os dedos apoiados nos regletes dessa parede com 105 graus de inclinação. Eu estudo cuidadosamente seus movimentos e memorizo a sequência. Quando já está a 15 metros ele faz uma pausa, bem abaixo do negativo chave. Abre as pernas e apoia o pé em um grão minúsculo, pinça um canto diminuto e se lança para alcançar um grande buraco. Sai caminhando pelos últimos 30 metros, que são apenas verticais.

Ao ver-me com sapatilhas, magnésio, ao pé da via e conhecendo minha fama, o orgulho força que eu repita a façanha. Todos os olhares se dirigem a mim, como se disessem: o que está esperando? Enquanto entro na fissura, penso que a situação parece um desafio de crianças.

Respiro fundo várias vezes fazendo ruído, como se se tratasse de convencer a mim mesmo. Alguns metros de movimentos fáceis e logo esses pequenos buracos em que coloco os dedos com precisão, antes de atuar com todas as minhas forças. Os primeiros 15 metros passam depressa, de maneira inconsciente. Logo ao abrir a perna esquerda até o minúsculo grão, fico paralizado ao dar-me conta de que, com a pressa, errei toda a sequência de movimentos. Estou com as mãos muito baixas nessa porcaria de reglete e cada vez com menos força. Estou desesperado e me pergunto quando vou cair feito um chumbo, cortando o ar feito uma andorinha, diante dessas cruéis estátuas de sal. A mente está inundada de imagens do abismo.

Olho entre as pernas e sinto um nó no estômago diante da perspectiva de uma queda nos blocos da base. Um sussurro grita que eu faça algo e faça agora. Respiro com fúria e meus braços, esgotados pelos 600 metros, parecem barras de titâneo. Enquanto aperto o reglete, levanto o pé para poder esticar o braço e entalar a mão na fissura cega acima, porém é pouco profunda e somente entra um terço da mão. Estou bloqueado, assustado e toda a minha existência se concentra em um ponto que arde, como se uma lupa concentrasse em mim os raios de sol. Envergonhado, compreendo qual é a única blasfêmia: arriscar minha própria existência. É precisamente o que estou fazendo, e isso me deixa doente. Sei que uns segundos perdidos poderiam ser... De pronto um clarão, o mundo pára, ou é o instinto de sobrevivência funcionando ao máximo? No instante em que um beija flor demora para bater as asas – uma vez – compreendi quão implacável é o desejo de viver. Não quero morrer! Porém os meus lamentos não mudam a situação: braços fundidos, pernas moles, cabeça em chamas. Meu medo devorou a si mesmo, e me deixou vazio e mortificado. Dar-se por vencido, desistir, seria mais fácil. Outro sussuro me diz em tom pausado: “Ao menos, morra tentando”... Coincidindo com essa ideia volto a entalar mão na fissura cega. Se conseguisse passar esse movimento chave, chegaria em uma boa agarra para dencansar antes da parte final. Não me atrevo a olhar para a mão, pois é uma piada como a mantenho entalada. Tenho que aguentar meus 86 kilos em um negativo, e isso parece ridículo, impossível.

Meu corpo está a uma eternidade tremendo nesse lugar, porém o beija flor moveu-se apenas um centímetro. Minha mão entalada afirma: “Não dá”, outra voz completa “não perde nada por tentar”. Retiro pouco a pouco a mão. Meu pé esquerdo segue equilibrado sobre o pequeno apoio e a coisa continua igual...”estou quase lá”. De maneira simultânea, arranco a mão direita da fissura e meu pé direito voa desde a saliência. Todo o meu corpo fica sobre o braço esquerdo debilitado. A adrenalina me empurra a essa agarra salvadora quando aperto o peito contra a parede. Coloco o peso dos 86 kilos sobre os pés que começam a tremer de uma maneira que nenhuma metáfora poderia descrever.
Antes de que decida continuar, o beija flor já está a meio caminho do Rio de Janeiro. Preferiria arrancar as molas do juízo com um alicate. Minha vista se nubla com manchas negras quando saio no cume.

Parecia um pouco nervoso – resmunga Bachar com seu sorriso.


Aquela noite, fui de carro até o povoado e comprei uma bebida, e no domingo, Bachar dedicava-se ao dia El Capitan (900 metros), eu perambulei por obscuros lugares no deserto, buscando tartarugas, fazendo grinaldas de flores selvagens, saborenado a paisagem... Fazendo todas essas coisas que faz uma pessoa quando sabe que sua vida está emprestada.


Nenhum comentário:

Postar um comentário