Celebrando essas gerações apresento a vocês um texto que é considerado um grande clássico da literatura de montanha.
A única blasfêmia
John Long

Derek Hersey escalando em solo. Morreu em 1993 no Yosemite. CC Andy Stephenson / geograph.org.uk
A
mais de 130 quilômetros por hora a polícia pode colocar você
na cadeia. Eu dirijo a uns prudentes 128. Tobin Sorenson conduzia a
160. Fez isso até que estourou
seu Datsun. Não surpreenderia a ninguém que se matasse tentando em
solitário a face norte do Monte Alberta. Tobin nunca teve limites.
Sua voraz motivação e sua audácia infinita o fizeram apaixonar-se
da escalada em solitário.
Estou
me dirigindo ao Parque Nacional de Joshua Tree, onde há
algumas semanas um
outro colega morreu
escalando sem corda. Depois da sua queda, me aproximei da base da via
e ao ver manchas de sangue, restos de carne e tufos de pelo, senti
calafrios. O solo integral não perdoa. Encaro essas desgraças como
faria um marinheiro experiente, e as considero evitáveis. Escalar em
solo é normal, creio eu. É preciso somente ser realista, não um
palhaço movido pela soberba ou pelo que os outros dirão. Aos 140
por hora chego a Joshua Tree, porém a noite demora a passar.
O
sol da manhã aparece na linha reta do horizonte e confere um brilho
falso às inumeráveis pedras que salpicam a superfície do deserto.
As paredes mais altas sobrepassam os 45 metros de altura. Me reúno
com John Bachar, provalvemente o número um da escalada livre. John
vive na zona de escalada mais ensolarada que possa encontrar em cada
temporada. Está há dois meses em Joshua
Tree e seus solos integrais deixaram atônitos todo o mundo. No
inverno, a época em que a universidade limita minha escalada aos
finais de semana, a minha motivação é fabulosa, mas minha forma
física nem tanto. Bachar sugere o dia Half Dome, significa dizer 600
metros de escalada, equivalente a altura do Half Dome. Isso significa
escalar 20 esticões de corda para
concretizar o dia Half Dome. Em um segundo, Bachar está calçado com
a sapatilha e com a bolsa de magnésio presa à
cintura.
- Está
pronto? Ele pergunta.
Nesse
momento percebo que ele pretende escalar os 600 metros em solo
integral. Para manter as aparências digo que estou de acordo, e
penso que, se propõe a algo demasiado ameaçador deixarei o jogo e
pronto.
Embarcamos
em terreno familiar: fissuras verticais, placas de aderência, tetos,
chaminés. Estamos alucinados. Estamos escalando em solo integral,
sem corda. De vez em quando uma voz me pergunta o quanto confiável
pode ser uma borda de 6 milímetros: se
você está apressado, ou aperta com a mão
convertida em uma garra, ou se apoia nessa
saliência com muito cuidado.
Depois
de três horas já demos conta de uma dezena de esticões. Nos
sentimos invencíveis. Aumentamos a dificuldade até o sexto grau. Os
metros são superados mais lentamente, porém as duas e meia da tarde
já completamos 20 esticões. Para terminar, Bachar
propõe fazer somente um VIIa, algo capaz de amedrontar qualquer um.
Sem comentários, VIIa é
o meu grau limite
no inverno … quando
estou inteiro e inspirado. Porém agora estou exausto e zonzo pelos
600 metros que escalamos, e os últimos 4 ou 5 esticões escalei por
pura teimosia. Apesar disso vamos correndo até o Interserction Rock,
lugar que estão reunidos os escaladores locais. Esse é também o
cenário do solo final de Bachar. Não perde tempo e, quando inicia,
deixa petrificados um amontoado de escaladores encrenqueiros. Move-se
com espantosa precisão, mantendo os dedos apoiados nos regletes
dessa parede com 105 graus de inclinação. Eu estudo cuidadosamente
seus movimentos e memorizo a sequência. Quando já está a 15 metros
ele faz uma pausa, bem abaixo do negativo chave. Abre as pernas e
apoia o pé em um grão minúsculo, pinça um canto diminuto e se
lança para alcançar um grande buraco. Sai caminhando pelos últimos
30 metros, que são apenas verticais.
Ao
ver-me com sapatilhas, magnésio, ao pé da via e conhecendo minha
fama, o orgulho força que eu repita a façanha. Todos os olhares se
dirigem a mim, como se disessem: o que está esperando? Enquanto
entro na fissura, penso que a situação parece um desafio de
crianças.
Respiro fundo várias vezes fazendo ruído, como se se tratasse de
convencer a mim mesmo. Alguns metros de movimentos fáceis e logo
esses pequenos buracos em que coloco os dedos com precisão, antes de
atuar com todas as minhas forças. Os primeiros 15 metros passam
depressa, de maneira inconsciente. Logo ao abrir a perna esquerda até
o minúsculo grão, fico paralizado ao dar-me conta de que, com a
pressa, errei toda a sequência de movimentos. Estou com as mãos
muito baixas nessa porcaria de reglete e cada vez com menos força.
Estou desesperado e me pergunto quando vou cair feito um chumbo,
cortando o ar feito uma andorinha, diante dessas cruéis estátuas de
sal. A mente está inundada de imagens do abismo.
Olho
entre as pernas e sinto um nó no estômago diante da perspectiva de
uma queda nos blocos da base. Um sussurro grita que eu faça algo e
faça agora. Respiro com fúria e meus braços, esgotados pelos 600
metros, parecem barras de titâneo. Enquanto aperto o reglete,
levanto o pé para poder esticar o braço e entalar a mão na
fissura cega acima, porém é pouco profunda e somente entra um terço
da mão. Estou bloqueado, assustado e toda a minha existência se
concentra em um ponto que arde, como se uma lupa concentrasse em mim
os raios de sol. Envergonhado, compreendo qual é a única blasfêmia:
arriscar minha própria existência. É precisamente o que estou
fazendo, e isso me deixa doente. Sei que uns segundos perdidos
poderiam ser... De pronto um clarão, o mundo pára, ou é o instinto
de sobrevivência funcionando ao máximo? No instante em que um beija
flor demora para bater as asas
– uma vez – compreendi quão implacável é o desejo de viver.
Não quero morrer! Porém os meus lamentos não mudam a situação:
braços fundidos, pernas moles, cabeça em chamas. Meu medo devorou a
si mesmo, e me deixou vazio e mortificado. Dar-se por vencido,
desistir, seria mais fácil. Outro sussuro me diz em tom pausado: “Ao
menos, morra tentando”...
Coincidindo com essa ideia volto a entalar mão na fissura cega. Se
conseguisse passar esse movimento chave, chegaria em uma boa agarra
para dencansar antes da parte final. Não me atrevo a olhar para a
mão, pois é uma piada como a mantenho entalada. Tenho que aguentar
meus 86 kilos em um negativo, e isso parece ridículo, impossível.
Meu
corpo está a uma eternidade tremendo nesse lugar, porém o beija
flor moveu-se apenas um centímetro. Minha mão entalada afirma: “Não
dá”,
outra voz completa “não
perde nada por tentar”.
Retiro pouco a pouco a mão. Meu pé esquerdo segue equilibrado
sobre o pequeno apoio e a coisa continua igual...”estou
quase lá”.
De maneira simultânea, arranco a mão direita da fissura e meu pé
direito voa desde a saliência. Todo o meu corpo fica sobre o braço
esquerdo debilitado. A adrenalina me empurra a essa agarra salvadora
quando aperto o peito contra a parede. Coloco o peso dos 86 kilos
sobre os pés que começam a tremer de uma maneira que nenhuma
metáfora poderia descrever.
Antes de que decida continuar, o beija flor já está a meio caminho
do Rio de Janeiro. Preferiria arrancar as molas do juízo com um
alicate. Minha vista se nubla com manchas negras quando saio no cume.
- Parecia
um pouco nervoso –
resmunga Bachar com seu sorriso.
Aquela noite, fui de carro até o povoado e comprei uma bebida, e no
domingo, Bachar dedicava-se ao dia El Capitan (900 metros), eu
perambulei por obscuros lugares no deserto, buscando tartarugas,
fazendo grinaldas de flores selvagens, saborenado a paisagem...
Fazendo todas essas coisas que faz uma pessoa quando sabe que sua
vida está emprestada.
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