Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates
estava aprendendo
uma ária com a flauta. “Para que lhe servirá?”
perguntaram-lhe.
“Para aprender esta ária
antes de morrer.”
Emile Cioran
Passo a passo, os pés deixavam marcas sobre a areia. As ondas, com
seu movimento constante, insistiam em apagar os vestígios.
Akira caminhava lentamente, olhos em direção ao mar, indefinição
entre o azul e o verde. O som das ondas ao contato com a areia,
assobios e melodias em busca de amor, o vento retornando do encontro
com o oceano, sons e cheiros úmidos, salinos.
Ao horizonte um ponto negro se distinguia na brancura da areia.
Era preciso se concentrar, é o que um samurai experiente deve fazer
antes de um duelo. Porém, nesse instante, a única coisa que
desejava era contemplar a paisagem, passo a passo. Perder-se entre as
luzes, sombras, odores da primavera.
A respiração estava ofegante, resultado da longa caminhada. Acima
de sua cabeça a paisagem de rocha e gelo causava sentimentos de
deslumbramento e apreensão. Um enorme corredor gelado anunciava o
início da escalada. Senin desembainhou as suas piquetas e começou a
cravá-las, o encontro entre o aço e o gelo produzia um som
hipnótico. Ele controlava a respiração para torná-la lenta e
profunda, era hora de acalmar a mente. O início da parede era pouco
inclinado, ainda assim executava cada movimento com cautela, sabia
que era somente uma questão de minutos até o corpo e a mente
entrarem em sintonia com o ambiente, em um estado próximo do transe,
onde não haveria distinção entre o homem, o gelo e a rocha.
Flocos
de neve tocavam o seu rosto. O vento castigava a pele descoberta,
lembrando ao corpo o gélido ambiente externo. Sentiu uma solidão
profunda.
Sorte, sorte era algo que um samurai não deveria esperar. Seria mais
um duelo entre tantos outros... Até quando continuaria vencendo?
Os passos o levaram a frente de seu oponente. Os olhares dos dois
homens encontraram-se. Permaneceram em silêncio, imóveis.
Procuravam enxergar as intenções do adversário; se percebessem o
mínimo temor no oponente, o duelo estaria terminado.
O simples som das piquetas sempre foi suficiente para que ele se
concentrasse imediatamente, mas desta vez as coisas não estavam
ocorrendo da maneira esperada. Em sua mente afloravam temores
adormecidos. A parede se inclinava cada vez mais, o gelo tornava-se
menos espesso. A cada movimento ficava mais difícil encontrar um
local para sustentar a piqueta, mesmo assim ele subia lentamente.
O esforço intenso e a apreensão faziam com que seu corpo suasse.
As pontas dos grampos escorregavam, a respiração aumentava o ritmo,
os olhos miravam o vazio que insistia em atrair seu corpo.
Por um instante a respiração cessou, não sabia o que fazer, pensou
em retornar, mas a dificuldade dos movimentos o desencorajou
rapidamente.
O inimigo lançou-se ao ataque, Akira conseguiu escapar esquivando o
corpo. Pensava em revidar, mas suas mãos não efetuavam o movimento.
Sua mente divagava no passado, cenas antigas de batalhas, rostos que
há muito tempo esquecera.
Perdera a noção de espaço e tempo, não conseguia recordar o que
havia imaginado, mas a simples sombra do pensamento causava calafrios
em todo o seu corpo. Abriram-se os olhos, não era como um sonho
ruim, o abismo ainda estava lá. Equilibrava o corpo em centímetros
efêmeros. Gritava com um companheiro que não existia, censurando o
inicio daquela loucura.
A espada acertou o alvo penetrando o corpo.
As piquetas e os grampos rasparam a rocha e não encontraram o mínimo
apoio. Em uma tentativa desesperada buscou uma saliência que não
existia, os braços cederam ao vazio...
Akira sentiu um ar gelado tocando seu rosto enquanto despencava no
abismo. Senin contorceu-se todo, com a sensação da lâmina
perfurando seu ventre.