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As impressionantes paredes do Cerro Colorado. Foto Alessandro Haiduke |
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Os gauchos e o cerro Colorado - à direita. Foto Alessandro Haiduke |
Don Marquez vive na Patagônia desde
criança. Na juventude trabalhou nas minas, enchendo seu pulmão de
poeira, enquanto os gringos acumulavam riquezas.
Hoje ele vive pastoreando suas
ovelhas, montado em seu inseparável cavalo, senhor das estepes.
Para o gaúcho Marquez a Patagônia é
o seu lar, distante dos ruídos e transformações do mundo moderno,
pois como ele mesmo diz:
– Não
existe dinheiro no mundo que pague a vida em um lugar tranquilo.
Nessa imensidão mineral não existe
rincão que ele não conheça.
Nos últimos anos novos visitantes
tornaram-se frequentes. São os escaladores que, a cada ano,
multiplicam-se na busca das inquietantes colunas de basalto do Cerro
Colorado. O local, que antes era território somente dos majestosos
condores, recebe em suas paredes incrivelmente verticais seres
humanos que sobem e descem, esses conquistadores do inútil.
O
Cerro Colorado está localizado na pequena cidade de Chile Chico, um
ponto isolado do resto do Chile. Para chegar a esse lugar deve-se
percorrer uma estrada de terra – que triplica o tempo da viagem –,
ou utilizar uma barcaça, com duas saídas diárias, que atravessa o
belíssimo lago General Carrera – segundo maior lago da América do
Sul –, celebrado pelo escalador Lito Tejada Flores:
Cada
um tem seu lago favorito na Patagônia. O lago Carrera é o nosso. É
a jóia de Aysen, um lago mais azul que o céu, maior que o mapa,
mais comprido que a rodovia e muito mais amplo que as lentes de
nossas câmeras. Demasiado grande para ser louvado em uma só página
ou num parágrafo repleto de adjetivos, porém merece cada um.
A
maior cidade na região de Aysen é Coihaique, e o aeroporto mais
próximo localiza-se em Balmaceda. É nessa região da Patagônia que
se encontra o Cerro Castillo, um dos cumes mais imponenentes da
região e local de referência para os escaladores de neve e gelo.
Chile
Chico está localizado em uma rota tradicional de viajantes – com
bicicletas, motocicletas e veículos – que desejam percorrer o
caminho da Carretera Austral. Realmente as paisagens são
deslumbrantes, sucedem-se as estepes aos pés das grandes montanhas,
belos lagos com variadas nuances de azul, florestas de coníferas,
uma paisagem exótica para um brasileiro.
Provavelmente
muitos viajantes - mais atenciosos - fixaram seus olhares no Cerro
Colorado, pois é uma elevação grandiosa que se destaca na
paisagem. O Cerro começou a tornar-se
conhecido da comunidade escaladora mundial quando Jim Donini –
escalador estadunidense reconhecido principalmente pelas suas
aventuras nas montanhas em Chaltén – em 2010 abriu algumas rotas
no local e posteriormente divulgou fotos dessas paredes na internet.
Aos
poucos as informações da localização começaram a circular com
maior precisão e os escaladores, fugindo da instabilidade climática
de Chaltén, visitaram o local em número cada vez maior.
Meu
colega Otaviano e eu estávamos organizando uma viagem para janeiro
de 2016. Entre tantos destinos possíveis, concordamos que seria
interessante provar uma patagônia ainda desconhecida: o Cerro
Colorado. Como o local ainda está sendo explorado, decidimos levar
também material de conquista, com a esperança de abrir algumas vias
novas.
Depois
do cansaço da viagem - avião, van, taxi, barcaça – chegamos ao
nosso destino e conhecemos o famoso anfitrião Don Marquez, que com
seus cavalos levou as pesadas mochilas até o acampamento que nos
abrigaria por todo o mês de janeiro. Trata-se de um lugar especial,
com uma visão privilegiada do lago General Carrera, água fresca e a
proximidade com as montanhas. Um dos únicos inconvenientes é que
não existem árvores no local, e o sol diário acaba castigando os
dias de descanso.
Organizamos
o acampamento e subimos para escalar algumas vias curtas e fazer o
reconhecimento do lugar. A primeira via que escalamos foi
Flight
of the Condors
-7a, uma via de entalamento de dedos, estética e exigente. Já nessa
primeira via percebemos que a graduação estabelecida segue o
exigente padrão estadunidense de escalada em fendas, ou seja, em
geral as rotas são mais difíceis do que estamos acostumados no
Brasil. Escalamos mais algumas vias curtas e nos preparamos para uma
escalada mais longa.
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Alessandro na via Flight of condors. Foto Otaviano Zibetti |
A
próxima rota escolhida foi Fingers
of Fathe
-150 mts/7b, que chega ao cume da montanha. Trata-se de uma via de
dificuldade moderada, onde é preciso negociar o acaso com as famosas
cascaritas locais – agarras formadas pelo desgaste do basalto –
que não dão nenhuma impressão de solidez, mas que
inexplicavelmente não se rompem. Chegando ao cume, apreciamos a
elegância dos condores em planar; descemos caminhando pelo outro
lado da montanha.
Chegamos
à conclusão que era hora de tentar abrir uma rota. Escolhemos uma
linha próxima da parte mais imponente denominada Proa, onde não
existiam vias segundo o croqui. Escalamos dois esticões e depois
segui por uma linha sedutora de rocha avermelhada, mas ao longo da
escalada encontrei marcas de magnésio. Como esperávamos abrir uma
rota independente até o cume, desci e segui pela esquerda; outra
desilusão: em um ponto da parede encontrei mais marcas de magnésio.
Desiludidos, chegamos a um cordelete para rapelar, os dois esticões
receberam o nome de Alegria
de pobre dura pouco –
6°.
No
dia seguinte a ideia de abrir uma rota até o cume não saiu da minha
cabeça e decidimos então concentrar as atenções na parede
denominada Escudo. Para acessar a base da parede é necessário
escalar o chamado Zócalo. Chegamos à base da parede e, para
garantir que não encontraríamos nenhuma via, decidimos escolher o
centro da parede. Os dois primeiros esticões foram negociados entre
fendas e as temidas cascaritas. À medida que subíamos o vento
aumentava e em um momento estávamos ao sabor do violento vento
patagônico. A escalada exigente tornava-se quase impossível, visto
que o crux era conseguir se agarrar a rocha quando a rajada de vento
varria a parede. O último esticão foi aberto devido a uma enorme
quantia de orgulho e teimosia, pois a velocidade do vento só
aumentava e assim terminamos a via E
o vento levou
-150 mts 7a/b.
Depois
de um espaço para o descanso planejamos escalar a via The
Magic Spatula –
150 mts/7c,
pois
tínhamos visto algumas fotos na internet que impressionavam. O
primeiro e o segundo esticão da via mostraram-se bons, mas a melhor
parte foi o terceiro esticão com 60 metros, uma fenda estreita onde
os entalamentos de dedos e os microfriends são essenciais. Em
seguida, escalamos o último esticão e rapelamos pela própria via.
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Otaviano na via Magic Spatula.Foto Alessandro Haiduke |
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Otaviano na via Magic Spatula.Foto Alessandro Haiduke |
O
tempo passou e aos pouco a memória foi esquecendo o sofrimento com o
vento e as pedras soltas na abertura da via E
o vento levou. Vasculhamos
as paredes e encontramos uma linha impressionante à esquerda da
Proa. A primeira enfiada resultou difícil, tanto na técnica quanto
na exposição. Otaviano progredia lentamente, negociando a segurança
com um sequênica de microsttopers. Chegava a minha vez de guiar, e o
panorama não se apresentava nada amigável: uma fenda estreita, as
vezes inexistente, e que cruzava dois tetos em sequência. Tentei
fazer todos os movimentos em livre, mas falhei em alguns trechos que
são transpostos em french
free.
Chegando ao final do esticão, fui em direção a uma reunião fixa
de outra rota. No meio do caminho me arrependi imensamente pois, ao
dominar a coluna de basalto, percebi que ela está solta e balança
ameaçadoramente de um lado para o outro. Desisti de usar essa
reunião e continuei a escalar pela esquerda. Fiz uma reunião em
móvel e, como não encontramos as chapeletas na mochila, decidimos
continuar no outro dia.
No
outro dia cedo decidimos tentar liberar o segundo esticão. Com a
corda de cima consegui liberar todos os movimentos, e imagino
deslumbrado um futuro onde algum escalador encadenará esses
movimentos: um desafio e tanto.
A
abertura do terceiro esticão foi problemática; fui para a esquerda
e para a direita e não encontrei nenhuma solução, as fendas
desapareciam. Sem opção, decidi seguir por um offwidth alguns
metros à esquerda, que não parecia nada amistoso. Infelizmente,
minha impressão estava correta, e fui obrigado a levantar a peça 4
por vários metros. Progredi e, com alguma dificuldade, cheguei ao
final da rota, batizada de Faroeste
Caboclo
- 150mts. Sem dúvida, essa linha foi a mais bela de todas as
nossas aberturas, e possivelmente é a rota mais difícil do lugar: o
esticão chave possui a dificuldade de 8b/c, altamente técnico.
Existe também uma variante menos exposta para o primeiro esticão
chamada Vida
de gado
-7b.
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Alessandro na primeira enfiada da via Faroeste caboclo. Foto Otaviano Zibetti |
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Alessandro na primeira enfiada da via Faroeste caboclo. Foto Otaviano Zibetti |
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Alessandro abrindo a segunda enfiada da via Faroeste caboclo. Foto Otaviano Zibetti |
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Otaviano abrindo a primeira enfiada da via Faroeste caboclo. Foto Alessandro Haiduke |
Chegou
o final do mês de janeiro, a comida e a viagem estavam terminando.
Ainda tivemos tempo para repetir algumas vias e abrir mais duas rotas
de monolargo: Mais
sorte que juízo 7a
e As
quatro estações 6°.
O
setor ainda conta com várias possibilidades de abertura – nem
sempre tão óbvias - e com certeza vale uma viagem, tanto pela
qualidade da escalada, como pela beleza do lugar. Aqui fica um
convite para os escaladores brasileiros descobrirem uma patagônia
além do Fitz Roy e do Cerro Torre, uma patagônia desconhecida:
...Aysen,
está separada da décima segunda região de Magallanes, a última do
continente, não por fiordes, senão por um imenso campo de gelo.
Isolada, separada do resto do Chile, livres de demasiada gente e
demasiado progresso. Palena e Aysen se mantém incrivelmente frescas,
naturais e belas. Em uma palavra: “desconhecidas”. Desconhecidas
e por isso, inexploradas. A Patagônia desconhecida, o segredo melhor
guardado do Sul.
Lito
Tejada Flores – A Patagônia desconhecida.
Para
mais informações sobre as escaladas e o acesso:
www.pataclimb.com